“Presentemente, e eis o progresso, os velhos trabalham, os velhos copulam, os velhos não têm um instante, um momento para fugir ao prazer, para se sentarem e pensar, ou se alguma vez, por um desastroso acaso, uma tal falha no tempo se escancarasse na substância sólida das suas distracções, há sempre o soma, o delicioso soma, meio grama para uma folga de meio dia, um grama para um fim-de-semana, dois gramas para uma viagem ao sumptuoso Oriente, três para uma sombría eternidade na Lua. E, ao voltarem, encontram-se no outro lado da falha, em segurança sobre o solo firme das distracções e do trabalho quotidiano, indo de cinema perceptível em cinema perceptível, de mulher pneumática em mulher pneumática (…)”
A citação acima já fornece algumas luzes do que vem a ser o admirável mundo novo. Mais preciso do que Nostradamus, Aldous Huxley criou uma ficção científica que não se fundamenta tanto no progresso tecnológico em si, mas nas implicações do desenvolvimento científico nas concepções morais e sociais do homem.
O livro traz uma sociedade futurista, precisamente no ano 632 depois de Ford. A referência para a contagem dos anos deixa de ser o nascimento de Cristo, o que reforça a ideia de uma amoralidade natural ao desenvolvimento humano. Aqui temos um dos aspectos mais marcantes na civilização do futuro, na qual certas repressões tipicamente religiosas é que passam a ser o pecado.
O objetivo essencial é garantir a estabilidade, o que é obtido por um sistema que proporciona a felicidade geral. Tudo que possa levar ao sofrimento é reprimido: o amor é um mal que conduz o homem a sentimentos conflitantes, a religião gera dúvidas sobre a condição humana, o isolamento leva ao desenvolvimento de uma consciência individual nociva… Estes são alguns exemplos de fatores que podem abalar o estado emocional e causar um caos na sociedade que, em larga escala, representa a sua própria ruína.
Desta forma, sob o lema “comunidade, identidade, estabilidade” a sociedade do admirável mundo novo é dividida em castas de acordo com suas utilidades, cada uma delas com sua memória própria, mas isenta de conflitos sociais. Para que a estabilidade seja alcançada, a racionalidade tipicamente industrial é estendida para todos os aspectos da vida. É desta maneira que a procriação natural é eliminada em favor da eficiência tecnológica, com todos os seres humanos sendo criados em grandes fábricas ao redor do mundo. O homem é feito em espécies, os Alfas, Betas, Gamas, dentre outras variedades menores, de maneira que após o “nascimento” todos são submetidos a um condicionamento de classe constante.
Nada de noção de família, o ser humano não é mais do que um cidadão de certa classe, criado e educado dentro de uma linha de montagem. Ele faz seu trabalho sem reclamar, não questiona quem está no poder, pois isso lhe é natural. E por falar em natural, pra que reprimir os instintos sexuais? Gostar de alguém no admirável mundo novo não é motivo para romantismos e vergonhas de adolescentes inexperientes. Gostou? Uai, então pega ligeiro! Só tem que ser higiênico, claro, e fazer os exercícios malthusianos caso você não seja esterilizado…
Neste ponto são evidentes as influências de Freud para a interpretação da sexualidade humana. A satisfação oriunda do sexo é elemento essencial para a felicidade, de maneira que este fim sobrepuja a ideia de procriação. A promiscuidade é incentivada no admirável mundo novo como dogma de felicidade sem os distúrbios oriundos da alteração emocional, o que coloca mais uma vez a vida humana em uma linha constante sem quaisquer alterações nocivas.
E se ainda assim houver algum problema, não vale a pena se preocupar. Para o resto há sempre a “soma”, uma droga fornecida a todos os cidadãos e que tem poderes mágicos, capazes de subtrair o homem da realidade e jogá-lo em um mundo de sonhos perfeitos.
Tudo muito bonito, para um cidadão comum deste tempo não haveria qualquer problema. No entanto, o protagonista da história não é uma pessoa como as outras. Bernard Marx é um Alfa Mais, o topo da pirâmide social, todavia é fisicamente diferente de seus colegas. Além disso, ele é demasiadamente tímido neste mundo tão objetivo. Perde muito tempo em atividades solitárias (seja lá o que isso queira dizer), e tem ideias um tanto desconcertantes, fatores que começam a desgastar sua imagem perante as outras pessoas. Em suma, o que realmente o distingue dos demais é uma consciência individual.
Lenina Crowne também é um pouco estranha em toda esta história, só que pelo fato dela não ser tão promíscua como as outras pessoas. Lenina e Marx… os nomes realmente não são meros acasos aqui, e o relacionamento dos dois é muito mais significativo que o jogo de palavras.
Com o objetivo de impressionar Lenina, Marx a convida para um passeio em uma reserva selvagem que abriga seres humanos em condições primitivas, com suas famílias, deuses e outras coisas retrógradas. O choque desta visita é potencializado quando eles encontram Linda, uma mulher civilizada que foi esquecida na reserva anos atrás.
Linda manteve os costumes libertinos, o que foi determinante para sua exclusão naquela comunidade. Por outro lado, ela não poderia resistir sem incorporar a condição de vida do lugar. Se ela já era uma estranha na reserva, a sua situação perante o mundo civilizado certamente não ficaria melhor. Afinal, ela teve um filho de acordo com a lei natural, fato obsceno no admirável mundo novo. John é um filho selvagem, e por suas origens não tem futuro em nenhumas dessas sociedades.
Bernard Marx decide levar John e Linda para a civilização com o intuito de ganhar o reconhecimento que ele sonhara. A lógica é simples: expor os selvagens para os homens civilizados, como aberrações.
Por um tempo funcionou bem. Marx ganhou um bom reconhecimento e várias mulheres, no entanto o modo de vida do selvagem comprometeu a sua reputação posteriormente. O choque homem natural X homem condicionado é o cerne da obra de Huxley, que evidencia os impactos extremos da racionalidade na mentalidade humana e a supervalorização do progresso.
É um livro extremamente curto, mas que leva muito bem à necessária reflexão sobre o progresso. A racionalidade veio caminhando desde a revolução francesa como um ideal que não pode ser afastado do homem, com um objetivo de gerar conhecimentos que sejam hábeis a prever o futuro. Significa em última instância uma vida estável e com conforto, de felicidade geral que suplanta a dor. O objetivo da sociedade atual não é muito diverso do admirável mundo novo.
É a ideia de quanto mais razão, mais estabilidade e mais felicidade. Assim, jamais fale que as crianças têm frescuras na escola. A verdade é que os pais não podem conversar com os filhos sobre coisas pequenas. Crianças têm distúrbios que só podem se tratados por psicólogos em nossas escolas particulares…. a preços bem definidos, claro, pois a racionalidade sempre tem um preço.
O conforto tem que vir sem questionamentos. Questionar quase sempre implica em mudanças, que causam instabilidades… Então é melhor não ter tempo pra isso. Nada como chegar em casa após 8 horas de trabalho, 4 horas de trânsito, e finalmente descansar a mente com a informação de que um famoso qualquer comeu 19 nabos. A televisão é uma maravilha, não? Já não é tanto a racionalidade e sim o controle econômico, mas não vou prosseguir neste ponto.
Apesar de ter sido publicado em 1932 o admirável mundo novo parece muito atual, uma descrição da vida real em algumas partes. É uma leitura indispensável para as reflexões do nosso tempo, principalmente para quem se interessar pela sociologia.
Tags: Aldous Huxley, Ficção Cientifica, Moral, O admirável mundo novo, racionalidade
Pingback: Criadores de Mundos: Júlio Verne | Grifo Nosso