“Hoje a mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.”
Assim começa O Estrangeiro (1942), de Albert Camus: a indiferença como a única certeza.
O Estrangeiro é uma narrativa protagonizada por Meursault, um homem que vive na Argélia francesa da década de 1940. De início o leitor já é surpreendido pela grande indiferença que caracteriza o personagem principal, ao ponto de classificá-lo como um ser completamente vazio. A ideia é que ele é pura sensação e nada de sentido, ou seja, se por um lado ele ama os efeitos sensoriais do mar e do cheiro do sal, por outro nada parece ter importância… no fundo a resposta é um eterno tanto faz.
Nas páginas iniciais Meursault recebe um telegrama do asilo de Marengo, informando que a sua mãe havia falecido. O que consternaria qualquer pessoa parece muito simples para o protagonista, que recusou a abertura do caixão e não derramou uma única lágrima desde que soubera do fato.
Meursault nem sabia a idade de sua mãe, o que não significa que ele não a amava, mas apenas que certos detalhes simplesmente não importavam. Ele é sempre coerente, e se não importa, ele nada demonstra. Tanto faz no final das contas, sua mãe já está morta mesmo.
Estas atitudes conduzem a uma crescente censura das pessoas, ainda que velada nos primeiros capítulos do livro. A reprovação social tímida aqui será relevante para o final da obra, razão pela qual Camus desenvolve o personagem de uma maneira que tenciona colocar parâmetros bem diferentes do socialmente aceito. Desta forma, quando a regra seria o luto, Meursault vai se divertir na praia como se nada tivesse acontecido.
Basicamente são esses os fatos importantes que marcam a primeira parte do livro, na qual o foco maior é apresentar ao leitor um personagem cru que, justamente por ser assim, vive intensamente em busca do prazer imediato. Ele não é uma pessoa alheia ao que o cerca, como eventualmente pode parecer. Ao longo dos capítulos iniciais vemos que o personagem é detalhista com as coisas ao seu redor, o diferencial é que ele despreza as relações sociais (e o sentido delas) descaradamente. Fica sendo um estrangeiro justamente por não fazer parte do jogo social.
Em uma visão superficial não temos muitos atrativos literários aqui, afinal o personagem poderia ser um simples esquizofrênico (e de fato parece). Uma reviravolta é justamente o papel da segunda metade do livro.

Uma das diversas edições francesas
Certo tempo após os acontecimentos narrados no início da obra, ao caminhar por uma praia Meursault acaba por matar um árabe que lá se encontrava. As circunstâncias estão ligadas ao caráter eminentemente sensorial do personagem, pois não havia qualquer indisposição preexistente entre os homens.
O único pecado do árabe foi segurar uma faca, refletindo os raios solares na face de Meursault. E o ser que vivia em face do prazer perdia então as boas sensações da praia, quebrando o seu equilíbrio. Com o desconforto do calor repentino Meursault tenta recuperar o prazer, atirando no pobre sujeito até ele cair. Ainda assim, ele desferiu mais 4 tiros no corpo inerte no chão.
O homicídio conduz o protagonista a julgamento, mas por mais incrível que pareça, a morte do árabe tem uma importância muito pequena. No Tribunal se discute o fato de Meursault não ter chorado no enterro da mãe, mostrando um comportamento insensível que é muito pior do que qualquer assassinato. É neste contexto que o promotor acusa o réu “por ter enterrado a mãe com um coração criminoso”, e não pelo homicídio.
Não existem entraves morais que obstem a alegação de que o homicídio foi cometido apenas pelo calor. O comportamento de Meursault permanece igual durante todo o livro, e no julgamento não temos uma exceção.
Mesmo com a condenação à pena de morte ele permanece apático, sem entender direito o que realmente acontecia. Apenas no decorrer dos dias surge uma profunda revolta, muito bem manifestada quando o personagem recebe um capelão que tenta confortá-lo com Deus. No momento de fúria que segue, Meursault parte então para uma calorosa defesa da vida:
(…) “Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldades passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não entediar”.
Pouco importa o sentido da vida. Por ser livre de correntes a vida de Meursault foi plena.

Albert Camus, o pai da teoria do absurdo
Camus não se preocupou em escrever um dicionário filosófico, com conceitos e definições dos elementos que constituem sua teoria. Partiu logo para a prática, provavelmente por suas experiências como jornalista. A técnica de alegorias é o sistema que o autor estabelece para a escrita, o que é bem vantajoso do ponto de vista da estética literária.
A teoria do absurdo é mais clara no Mito de Sísifo (1942), mas aparece muito bem em o Estrangeiro. A ideia basilar é simples: viver é natural, e mais natural ainda é a nossa necessidade de que a vida seja explicada. É próprio da racionalidade humana a atribuição de sentido para o mundo, sempre em uma tentativa de afastar a noção de finitude/morte. Todavia, o objetivo não é alcançando com eficiência, e o mundo se apresenta como um antagonismo de forças que levam o homem a ser um estrangeiro em seu próprio ambiente. Só resta o sentimento do absurdo.
Afinal, sua racionalidade manda a explicação e o mundo não a permite. Deste absurdo nasce a revolta em busca da coerência das coisas, da unidade (racional ou moral) que determina um equilíbrio.
A ciência progride para explicar vários fenômenos naturais, mas é insuficiente para responder as questões mais básicas da existência (sentido e valor da vida, destino do homem, etc.). A religião cristã – mas não só ela – tenta dar um nó em toda esta situação ao justificar o sofrimento humano como fruto do pecado, estabelecendo um sentido a priori e uma razão para a vida depois da morte. Tudo com o objetivo de contornar o desespero que vem da finitude/morte.
O grande inconveniente é que, ao explicar a vida, consequentemente ela nega a vida. A explicação precisa de valores que a fundamentem, os quais acabam por criar uma vida artificial. É assim que Meursault recebe uma condenação por ter um coração criminoso e a vida do árabe é esquecida. Portanto, mais vale o sentido do que a vida.
Os extremos do comportamento de Meursault traduzem bem o paradoxo em que vivemos. Ele aceitou a vida como ela é, crua, e por tal razão foi condenado. Somente a hipocrisia poderia salvá-lo. Nas palavras de Camus, “Ninguém estará muito enganado, ao ler ‘O Estrangeiro’ como a história de um homem que, sem heroísmos, aceita morrer pela verdade.”
O artigo já ficou muito grande e ainda assim não foi possível fazer mais do que uma análise superficial. Há muita coisa que pode ser comentada, mas deixo para uma outra oportunidade.
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