“Por que nos limitarmos a libertar Constantinopla das pressões dos muçulmanos? Passando à ofensiva, poderíamos recuperar os territórios mais meridionais, a Síria inteira e a Palestina! E Belém, Nazaré, Jerusalém. E o Santo Sepulcro! E não seria o imperador bizantino a recuperá-los, mas a cristandade em seu conjunto! A essa altura, a Igreja de Roma, a única verdadeira herdeira de Cristo, a promotora da recuperação dos lugares santos, não encontraria dificuldades para obter o controle das igrejas orientais! (…)”
Esta aí um livro que fascinaria todo tipo de psicopata já pela “belíssima” capa. Com 572 páginas esparramando corpos dilacerados para todos os lados, houve muita coerência dos editores em acrescentar logo abaixo do título que essas são “as páginas mais sanguinárias da história da cristandade”.
Um bom livro, mas demasiadamente exagerado justamente pela violência. E se é excessivo nisto, acrescente-se o questionamento da divindade de Jesus e pronto, já temos um novo candidato para torrar na fogueira dos hereges.
Jerusalém é o primeiro livro de Andrea Frediani a ser comercializado no Brasil. O autor tem uma sólida formação em História, ficando consagrado na Itália com outros romances dentro desta esfera mais fática, como por exemplo em 300 guerrieri: La Battaglia delle Termopili. Especificamente quanto a Jerusalém, a proposta continua sendo um enredo lastreado em acontecimentos reais durante a primeira cruzada, mesclando personagens que efetivamente existiram (como os lideres militares Raimundo de Toulouse, Godofredo de Bulhão, Roberto da Normandia, etc.) com outros fictícios. Naturalmente são estes últimos que vão conduzir a história, ainda que eles não sejam personagens com tanto relevo.
O livro propõe que Jesus não era o verdadeiro filho de Deus, mas tão somente um rabino dentro das dezenas de seitas judaicas que dominavam o primeiro século. Por se voltar contra os sacerdotes bajuladores dos romanos, instigando uma espécie de revolta contra o Império, ele foi rapidamente crucificado. Assim a culpa seria sempre de Roma.
Logo após a morte de Cristo, seu irmão Tiago ficou responsável pela difusão da doutrina entre os próprios judeus, naqueles mesmos termos de pureza religiosa e repúdio aos romanos. Paralelamente a este trabalho, o apóstolo Paulo começou a pregar uma doutrina completamente diversa, que criava uma nova religião centrada em Jesus. Por ser justamente a versão calcada na “fraternidade universal”, culpando os judeus pela morte de Cristo, foi a versão que colou em Roma.
Tiago relatou o equívoco gerado por Paulo em pergaminhos, os quais permaneceram intactos ao longo dos séculos. Se por um lado os documentos criam um grande perigo para a Igreja Católica, por outro representam uma possibilidade de absolvição de todos os judeus. E como os pergaminhos acabam nas mãos de uma judia alemã, acostumada com todo tipo de perseguição, já é fácil perceber o que ela pretende fazer…
Este é o ponto central de Jerusalém. Tirando isto temos apenas os cercos intermináveis na cidade santa, soldados pestilentos morrendo de fome, soldados famintos sendo trespassados por flechas árabes, soldados mortos empilhados nas portas de Jerusalém… Depois da invasão dos cruzados temos exatamente a mesma ordem de fatos, acrescentando-se os estupros em massa de mulheres árabes e judias. Um excesso que superou o sítio narrado por Bernard Cornwell em Azincourt. No mínimo assustador.
Mas antes de entrar especificamente no cerco de Jerusalém, o livro apresenta constantes flashbacks que mostram a cidade no ano 70 D.C., logo após a destruição promovida por Tito. Nestes retornos paralelos o autor demonstra como o pergaminho de Tiago foi recuperado, um aspecto que é muito bem colocado ao longo da obra. Pode-se dizer que isso serve como “cereja do bolo” para uma sequência de fatos meio previsíveis, principalmente para o leitor que já tem algum conhecimento sobre o tema.
A história é desenvolvida a partir da perspectiva de 6 personagens principais: Ricardo (um soldado normando que entra na cruzada para se redimir de suas antigas falhas), Emanuel (um soldado bizantino que também ingressa na cruzada para se redimir de falhas passadas), Inês (uma prostituta que “trabalha” no acampamento cruzado), Rebeca (a tal judia que possui os pergaminhos de Tiago), Firuz (um turco que luta ao lado dos árabes em Jerusalém) e Anselmo (padre do acampamento cruzado)
Certamente o leitor deve achar os personagens estranhos, com pouquíssima harmonia para a história. Pelo contrário, apesar da diferença entre eles há uma coordenação satisfatória ao longo da trama. É interessante perceber que eles não se enquadram em um aspecto heróico de verdade, uma vez que se tratam de pessoas comuns que participam do jogo conforme as regras dos lideres militares. É claro que existem certos momentos de heroísmo que cativam o leitor, mas não espere façanhas impossíveis.
Esses personagens se entrelaçam ao longo da trama através de relações bem simples. Primeiramente o livro apresenta o momento em que Rebeca foge da Europa com os pergaminhos, buscando paz em Jerusalém. Ao mesmo tempo ela tenciona divulgar o teor dos manuscritos para eliminar a culpa dos judeus na morte de Jesus, acabando assim com todo o massacre promovido pelos cristãos.
É nesta fuga que ela acaba conhecendo Ricardo, que a ajuda diante de uma turba de soldados furiosos. Eles vão se reencontrar fora das muralhas de Jerusalém, quando ela confia ao soldado a guarda dos manuscritos. São os personagens de maior impacto para a trama.
Acredito que há uma desvalorização dos personagens e da trama com os constantes encontros “casuais”. Não há grande problema no reencontro de Rebeca e Ricardo durante o cerco de Jerusalém, mas colocar vários encontros cruciais para a história é exagero. Por exemplo: Firuz e Emanuel se conhecem na juventude, durante uma batalha contra os turcos. Anos mais tarde se encontram novamente no sítio de Jerusalém… No primeiro encontro Firuz fica consternado ao ver seu antigo amigo, deixando de matá-lo. No segundo é a vez de Emanuel ter seu momento de tolerância. No terceiro, por fim, chuta-se o balde com uma luta cega entre os dois… Ninguém sabe quem é o oponente até a primeira morte, quando temos aquela surpresa sem graça comum em toda novela das oito.
No geral é um livro bom, mas poderia ter recebido um cuidado melhor em certos aspectos. Alguns personagens “realmente” principais talvez ficassem mais atraentes do que os diversos “comuns”. E falando em comum, como o autor desde o começo já explica os fatos basilares do romance, toda essa fragilidade parece ainda mais evidente.
Desconfio que o zelo na descrição das batalhas seja uma forma de equilibrar a balança, mas se era este o objetivo, certamente ela ainda está inclinada para um único lado.
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